Descartesianamente

Plateia em silêncio durante e depois da exibição de “Ex Isto” no Sesc Paço da Liberdade, em Curitiba.

O filme, dirigido pelo cineasta mineiro Cao Guimarães (“A Alma do Osso/2004, “Andarilho/2006”,), é fruto nascido à partir da adaptação livre do romance “Catatau” do poeta, romancista e tradutor curitibano Paulo Leminski (1944-1989).

Catatau (1976) é uma obra experimental, extrema, sem fronteiras, libertária da língua e da linguagem. O ‘Finnegans Wake’ do Brasil, segundo o próprio diretor do filme.

A decodificação cinematográfica da possibilidade imaginada por Leminski da vinda ao Brasil do filósofo racionalista francês René Descartes como membro da comitiva do holandês Maurício de Nassau (1604-1679) atiçou os sentidos do público pelo seu caráter altamente experimental.

Lisérgico, quente, tropical, abóboras, aranha, rio, floresta, gelo, mar, pássaros, chuva, pessoas, música clássica, areia, perfomance, pênis, sol, formigas, brega, chuva, video-arte, cabeças de peixe, mercado, papagaio, Amapá, Alagoas, Pernambuco, Brasília, Brasil, dança, delírio cartesiano, alucinação geométrica, vertigem, transgressão, cine-poesia selvagem, “Ex Isto” se revela na dimensão cinematográfica tão visceral quanto Catatau o é na dimensão literária.

Se em Catatau a linguagem delirou para se libertar, em Ex-isto é o próprio cinema nacional que delira em busca de novas possibilidades. Explosão de sentidos, cores, sons, possibilidades. Em alguns instantes o filme parece incorporado pela própria natureza. Isto fica mais claro quando descobrimos que Cao Guimarães não usa roteiros em seus filmes.

No corpo do ator João Miguel (Estômago”), Descartes envereda pelos trópicos e rompendo limitações espaciais e temporais investiga questões da geometria e da ótica diante de uma terra em transe.

A atuação de João Miguel evolui ao longo do filme e num dos mais impressionantes momentos do contemporâneo cinema realizado em solo tupiniquim o ator-descartes-razão, em transe baba, balbucia, tenta fundir-se ao todo, mas há uma fronteira para a compreensão e para a libertação total, por fim, no limite da ficção e do real, literalmente nu de (S) cartesianismos se integra à paisagem e esta ao filme, e este ao ator e este a paisagem e tudo à arte.

Não há diálogos, apenas narração em off à partir de textos de Descartes (“O discurso do método”), mas essencialmente de “Catatau”. A trilha sonora, bastante expressiva, é assinada pelo duo mineiro “O Grivo“.

O silêncio após “Ex Isto” significa a impossibilidade de se apreender num sistema lógico a natureza, seus gritos guturais, suas convulsões barrentas, a geometria da aranha, a monstruosidade da lesma, bem como o caos político e social brasileiro, mas também é o silêncio de Descartes diante do monólogo polifônico da natureza, a verdadeira protagonista do filme, da existência da humanidade e de todas as existências, a síntese de tudo, o tudo e o nada.

Resta-nos existir no fluxo contínuo da existência e imaginar palavras quando não as temos para significar o mundo que contínua impassível frente aos olhos, quer sejam os nossos, quer sejam do peixe. “Catatau é o fracasso da lógica cartesiana branca no calor”, nos lembra Leminski.

A crítica a este mo(NO?)delo racionalista pela ótica da arte, seja em estado bruto por Leminski, seja filtrada por Cao Guimarães, oferece-nos a possibilidade de entrarmos em contato sem mediações com nós mesmos, com nossas construções do real, com nossos paradigmas sobre o que é ou  que não é cinema, com nossas próprias verdades e mentiras e, quem sabe, antropofágicos que somos por oswaldiana natureza, chegará o momento em que poderemos digerir “Ex Isto” e, quem sabe, “Catatau”.

“Ex Isto” é o segundo lançamento da série Iconoclássicos que foi aberta com “Daquele Instante em Diante”, documentário dirigido por Rogério Velloso sobre o músico e compositor Itamar Assumpção. Ainda por vir estão trabalhos que abordarão Nelson Leirner (dirigido por Carla Gallo), Rogério Sganzerla (Joel Pizzini), e José Celso Martinez Correa (Tadeu Jungle e Elaine César).

Enquanto os créditos sobem agarramos “Luzes” canção de Paulo Leminski e Ivo Rodrigues, interpretada por Arnaldo Antunes, para não nos transformarmos em blocos de gelo, cubos cartesianos, neutros, organizados e distantes da complexidade da existência, & assim, aceitando novas possibilidades de existir é que seremos capazes de navegar na imensidão de um mar agitado de significados, sentidos e símbolos que se alternam entre a clareza extrema da razão capaz de cegar e o desfoque absoluto da loucura.

etc catatau sem ponto final

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Programação Ex-Isto em Curitiba

SESC Paço da Liberdade
Praça Generoso Marques, 189 – Centro

Sessões:

10/08 (quarta), 19h30
14/08 (domingo), 16h
16/08 (terça), 19h30
17/08 (quarta), 19h30

Cinemateca
Rua Carlos Cavalcanti, 1.174 – São Francisco
Sessões:
18/08 (quinta), 15h45, 18h e 20h.


menino de pensão

enquanto a garoa fina caia no crepúsculo morno iluminada pelos faróis e pelos olhos verde-brilhantes do vendedor de guarda-chuva decidi que me mudaria.

a lua minguante brilhou entre nuvens negras.

– ela mora aqui?
– sim no segundo andar; pode colocar a bicicleta no corredor.

apertei uma mão no quarto sala & senti teu cheiro antes.

– assim que as marcas do outro na parede forem passado te ligo.
– até hoje só havíamos nos falado por telefone.
– tem lavanderia; a cozinha e o banheiro são coletivos.

na televisão algo que não consigo perceber conscientemente.

– não tenho muita coisa, alguns livros, roupas.
– você é estudante?

“para ver tv é preciso estar fora do ar”, penso.

– há um guarda-roupa, cama. vou por uma mesa lá.

sobre o criado mudo comprimidos marrons iluminados por raios catódicos.

– tenho que pagar um mês adiantado, né?
– isso mesmo. quando você sair não tem dívida.
– um ponto para você se conectar.
– ela é meio rabugenta, mas puxa-saco dos moradores novos.
– você vai ver que até parece que ninguém mora aqui de tão silencioso; é de propósito.

– acende a luz pra gente conversar melhor.